HIV 2: supervírus ou supermito?

Com a descoberta de um paciente que desenvolveu os sintomas da aids rapidamente e que se tornou resistente aos medicamentos, pesquisadores falam de um suposto e mais poderoso vírus da doença

Um único caso no mundo até agora, constatado há alguns meses pelo serviço sanitário de Nova York, nos Estados Unidos, fez soar o sinal de alerta entre médicos e pesquisadores: um suposto supervírus da Aids, batizado de HIV-2, foi anunciado como possível causa do desenvolvimento da doença em um curto período de tempo - de quatro a 20 meses - em um homem de 40 anos. Isso pode ser constatado porque o indivíduo havia feito um teste para detecção da síndrome com resultado negativo em meados de 2003 - e a partir desse dado os especialistas estimaram que ele desenvolveu a infecção de dois a dez meses após ter se contaminado. Essa progressão em alta velocidade chamou atenção, já que o HIV é capaz de ficar incubado por anos. "Ainda não se chegou à conclusão de que é uma nova cepa viral mais agressiva que surgiu ou que se trata de uma situação isolada. O que sabemos em relação à Aids é que, entre o momento em que o indivíduo se infecta até a primeira manifestação da doença, a média de evolução dos sintomas é de 10 anos", explica Ícaro Boszczowski, infectologista do ambulatório do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo.

Outro dado que elevou a preocupação dos profissionais de saúde foi a força do vírus: ele mostrou-se muito resistente a três classes - das quatro existentes - dos medicamentos que combatem o mal, logo que o americano começou o tratamento. Normalmente esse tipo de reação só acontece quando o paciente já foi tratado com esses remédios, as chamadas drogas anti-retrovirais. Além disso, o comum é que exista resistência apenas a um ou dois tipos de fármacos.

Apesar de a natureza do vírus do homem de Nova York ainda estar sendo pesquisada, as formas de transmissão foram as já conhecidas. Ou seja, ele teve inúmeras relações sexuais sem proteção nos meses anteriores à sua contaminação e ainda é viciado em metanfetamina cristal, uma droga que pode ser fumada em cachimbos, como o crack, ou injetada, o que possivelmente deve tê-lo levado a compartilhar agulhas. "Não se pode dizer que o vírus tenha entrado no organismo por uma via diferente", esclarece Ícaro Boszczowski.

Vários fatores em jogo

A análise genética, feita pelo Centro Aaron Diamond, em Nova York, mostrou que esse HIV possui um grande potencial destrutivo, fazendo muitos especialistas acreditarem até que 'ele veio pronto para matar'. No entanto, para cientistas que não pertencem aos grupos que isolaram o vírus no americano, a notícia não deve ser motivo de pânico. Segundo Paul Volberding, diretor do Centro de Pesquisas da Aids da Universidade da Califórnia, em São Francisco, o aparecimento rápido dos sintomas não depende apenas do vírus, mas também do estado em que se encontra o paciente. Há quem sugira que o problema tenha sido causado pelo uso da metanfetamina, cuja ação teria enfraquecido o sistema de defesa do rapaz. "Pode ter havido uma predisposição genética ou carga viral muito alta. Talvez ainda o vírus tenha sofrido uma mutação. São inúmeras variáveis que temos que considerar antes de dizer que é um agressor altamente potente", considera Paulo Olzon, infectologista e professor de doenças infecciosas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

A conceituada revista inglesa The Lancet recentemente também manifestou opinião sobre o assunto, alertando para a necessidade de vigilância constante em relação ao vírus. A publicação fala que o caso do nova-iorquino reforça a idéia de que o HIV é um inimigo terrivelmente versátil e que, apesar de todos os avanços em relação às descobertas de novos recursos de tratamento, a prevenção ainda é a melhor estratégia de combate ao mal.

Ecos brasileiros

O caso nos Estados Unidos começa a ter repercussão, mesmo que ainda sutilmente, também no Brasil. "Acredito que a divulgação da notícia por parte das autoridades daquele país tenha sido precipitada, já que se trata de apenas um paciente", diz Áurea Celeste Abadde, vice-presidente e fundadora do Grupo de Apoio à Prevenção à Aids (Gapa), primeira ONG ligada à doença na América Latina. "Mas o estudo aprofundado é necessário, já que o vírus é uma praga que mata", completa.

Presidente-fundador do Instituto Vida Nova - uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) de natureza filantrópica - e vice-presidente do Fórum de ONG/Aids do Estado de São Paulo, Américo Nunes Neto vê um lado positivo no alerta. "Isso nos remete a reflexões e à promoção continuada das ações mais seguras de prevenção ao vírus HIV", afirma. Acima da polêmica discussão, no entanto, ele considera a distribuição dos medicamentos - que em alguns estados ocorre de maneira fracionada - uma das questões mais sérias a serem abordadas no momento. "Esse problema é grave porque pode causar a interrupção no uso dos anti-retrovirais em pacientes que têm dificuldade de retornar às unidades especializadas de saúde", analisa. O infectologista Paulo Olzon adverte ainda para os riscos que esses doentes correm: "A pessoa que não utiliza os remédios corretamente passa a ter cada vez mais resistência a eles. E, com isso, passaria a formar um vírus mais agressivo."

COMO SE PROTEGER

* Faça sexo seguro, ou seja, use sempre o preservativo
* Jamais compartilhe agulhas e/ou seringas
* Em caso de dúvida, submeta-se ao exame que detecta o HIV. Ele pode ser feito três meses após a exposição a uma situação de risco. Esse período é chamado de 'janela imunológica' - a fase em que o corpo ainda não produziu anticorpos suficientes para serem detectados no teste, o que pode levar a um resultado falso-negativo
* Para evitar o contágio entre mãe e bebê, durante a gravidez, o pré-natal é imprescindível

Ainda não existe vacina

Segundo classificação da Organização Mundial da Saúde (OMS), a aids hoje é uma doença crônica e controlável. Porém, a cura está distante. Dos avanços mais recentes no tratamento, o coquetel - combinação de substâncias anti-retrovirais que surgiu em meados de 1997 - é mesmo a única descoberta real que melhorou a qualidade de vida dos infectados. A vacina, alertam os médicos, ainda é um sonho distante. No final de abril, por exemplo, cientistas da Universidade de Duke (EUA) descobriram que as vacinas fracassaram porque induzem à criação de um tipo de anticorpo que acaba destruído pelo sistema imunológico do doente. "A imunização e várias outras alternativas estão sendo testadas, mas não há nada de concreto. As tentativas são válidas porque ajudam a mobilizar as pessoas. Mas, por outro lado, cria-se uma expectativa de cura muito grande", analisa o médico Paulo Olzon. Outro problema que impede o avanço no desenvolvimento da vacina, na opinião de Américo Nunes Neto, presidente do Instituto Vida Nova, é a falta de voluntários que se candidatam para os testes.